domingo, 26 de setembro de 2010

Trecho do livro de Memória

(...) Alguém me diz que Alagoa Nova não existe, que é o quintal de Campina Grande. Bah! Uma pena que os orgulhos regionais meçam todas as sombras estranhas pela mesma rasa, alegando que enquanto Campina Grande é um desaforo capitalista, uma afronta, Alagoa Nova não passa de um discreto padrão provinciano, sem eira nem beira. Pode ser, mas é onde se encontra a calma que está na janela onde alguém mastiga demoradamente uma batata assada; no calçadão da igreja, onde o eu poeta meditava e observava as barreiras avermelhadas do Balanço; na sombra do banco onde a velha explica ao menino o teor do catecismo; no olhar da menina que conversa com sua boneca de pano; em todas as pessoas repetidamente alheias ao tempo, porque sabem que o tempo continuará a passar, paulatina e inexoravelmente, e é a ele que as pessoas devem estar atentas. Pessoas sem pressa para assistir à vida, porque a vida está lá, embora até nem saibam. Mas isso se aprende, o tempo ensina. Por isso é que não se deve correr. É preciso que cada um carregue sua bagagem e, dentro dela, a herança dos seus antepassados.

Alagoa Nova existe, sim. Não é um mero quintal. Uma hora, quando menos esperarmos, se abrirá ao progresso sem perder a calma. Cada um se orgulhará de ser um cidadão alagoanovense, de viver uma vida moderna e praticamente rural.

Isso pode parecer sem sentido dentro do movimento frenético de hoje. Fará mesmo algum sentido? Haverá calma em algum lugar? Certamente não somos chineses, taoístas, para exercermos em silêncio a forma tradicional de movimentos lentos do corpo que convidam à meditação enquanto ajudam a sua elasticidade. Somos alagoanovenses, paraibanos, brasileiros. Mais que tudo, alagoanovenses. Na cara e na coragem, na sorte e na vida. Por isso calados, distantes, meio estrangeiros, aruás do brejo, como me apelidaram um dia.

                                                              ***
Estamos em junho do ano 2001, sexta-feira, 1°. Faz tempo que penso em escrever sobre Alagoa Nova. Já imaginei dia, mês, mas na mão direita parece ter um esporão fincado que me impede fazê-lo. Mas decidi: embora doa, devo fazê-lo, até porque o relato acabará compondo uma trajetória de vida, com marcas que por pouco não foram lavadas ou levadas na última enxurrada do Mamanguape, aquela que não houve e nem sei se haverá.

Logo cedo esbocei reações de amor à cidade natal. Recusava-me sempre a sair, passar dias no cariri. Quando acontecia, batia o pé, chorava, porque já adorava aquela nonchalance alagoanovense. Esse apego era tal que cresci achando que o mundo começava e terminava ali.

Mas o tempo foi passando, o ângulo visionário se abrindo, as pessoas se revelando, tudo ficando aborrecido e tacanho. Mas eu era mesmo um alagoanovense com manias chauvinistas e só muito mais tarde é que comecei a pensar Alagoa Nova como uma cidade onde não se permitia nenhuma lembrança. Para mim, estava sempre em permanente demolição, conspirando contra qualquer memória. Não somente uma demolição física, mas também moral e de costumes. Era esse seu gozo, seu espetáculo, sua principal característica. Em algum momento cheguei a imaginar o contrário, hoje não, penso que é uma legitimidade. E, assim como há povos que constroem, há os que destroem; há povos que têm na destruição um sentido de vida, assim como alguns o encontram na construção.

Seria o alagoanovense um povo demolidor? Por que? Para ser fiel a sua própria história, que é quebrada, quase nada? Mas Alagoa Nova não é uma cidade de terremotos, de sismos, a natureza é pacífica. Por que não responde a um ideal? Embora não queira aceitar aquela idéia de quintal da grande cidade, não podemos ignorar que ela se converteu num lugar meio que de passagem, intermediário, como se fora um lugar para nunca se fixar, se estabelecer, parecendo ser apenas o caminho para Campina Grande. Passar por ela e continuar caminhando. 

Os prédios ainda são inspirações ou aspirações de algo que não chegou a ser feito. Por vezes a víamos melhorada, colorida, no entanto sempre esteve inacabada. Não se concluiu. Ou muito pouco. Por isso talvez sonhe com o dia em que alguém possa inaugurá-la, alguém que tenha amor telúrico, vontade política, que rasgue a terra vermelha dos canaviais e ligue-a às terras das bagaceiras através de uma estrada que a aproxime cada vez mais do mar.

Em verdade, tenho lembranças amargas de demolições na minha infância: sobrados, casarões, igrejas, fachadas de azulejos portugueses, janelões, monumentos. Eram trastes? Talvez, mas tinham sentido, diziam algo.

Minha casa, a casa onde nasci, virou ruína. Pagou pela sina de nunca ter sido realmente completada. O banheiro sempre com cara de tapera; a cozinha, vez por outra faltando um pedaço; o corredor nunca rebocado; o resto era só taipa, engenharia do século dezoito. No entanto nada me regozijava mais do que a vida naquele recanto, a convivência pacífica com os morcegos, baratas, camundongos; o sabugueiro em flor, o flamboiã, a laranjeira-cravo. Eu ficava ali, no quintal, me entregando às mais doces fantasias, me vendo protagonista de algo: amava, casava, fazia amor, lia Os Miseráveis, fingia ser Jean Valjen. Era o único lugar verdadeiramente íntimo, onde tomava minhas decisões.

Aquela casa da Epitácio Pessoa, 115, era amarela, sala ampla, chão em lajotas carcomidas, corredor, cozinha com pilão, moinho, potes d’água sob os quais se escondiam roliços cururus. Era o meu mundo.

Gostava da leve umidade das tardes. No tempo das chuvas, sonhava com um rio serpenteando no quintal, os sapos em festa, as matutas vindo para a feira dominical, incensando a casa de perfume barato, provocando um rumor confuso de vozes e frases erradas. Matutas esbeltas, peitos redondos, atrevidas e insinuantes. No quintal, os cavalos. Parecia uma estalagem de Pushkin. Ali meu pai encilhava mulas e eu permanecia com o olhar fixo através da soleira da porta, de onde minha mãe vez por outra me mostrava mil constelações no lúgubre céu. O grande flamboiã que eu mesmo plantara, dominava; era meu companheiro predileto. Com ele falava e confessava meus problemas e anseios.

Aos sábados me preparava para o catecismo do Padre Borges, ministrado por Niná Colaço, que passava o tempo a resmungar ave-marias e a observar o asseio dos pivetes, cabelos, joelhos, unhas e falva de Deus, do pecado, principalmente. No dia seguinte eu corria para Edvirges, a velhinha querida do grupo escolar, para questionar as palavras de Niná, mas ela era mais antiga e eu acabava me conformando com o fato de que a única coisa calamitosa do mundo era mesmo o pecado. Conheci, portanto, um Deus carrancudo, vingativo, pronto para punir a qualquer momento. Mas minha mãe interferia e falava de um Deus diferente: bondoso, caridoso, o que criava em minha cabeça uma confusão danada.

E seguíamos assim: pecados, proibições, orações. As descobertas eram temerárias. Os temas referentes à sexualidade só muito tarde passaram a fazer parte de nossas conversas na Praça Epitácio Pessoa. Havia coisas que eu gostaria de entender mas guardava para mim mesmo, até o dia em que alguém comentou do pênis do Padre Borges. Que absurdo! O padre tinha pênis? Excitava-se? E o pecado? A cabeça baqueou. Adauto Silva, tabelião público, usou um termo chamado “sublimar”. O que era mesmo sublimação? Entendi que Padre Borges não pensava em sexo (ou não se excitava) porque sublimava. Perguntei a Xixi, a preta velha querida e sabedora de tudo. Ela alarmou-se, achou que eu estava pecando por palavras. E piorou sua indignação quando perguntei se o padre soltava pum. Foi um deus-nos-acuda. Entendi que um santo homem não podia soltar puns. Mas se o Padre Borges não soltava puns, por que se irava? Xixi dizia que era uma ira santa, a mesma ira de Deus (...).

Um comentário:

  1. LINDO!!!! QUE CONVERSA É ESSA DO PADRE JOSE BORGES? KKKKKKKKKKKKKKKK SÓ NA IMAGINAÇÃO DE UM MENINO...AS DÚVIDAS, OS ANSEIOS, OS PORQUÊS...

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