quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Diário de Moscou

Trecho do livro "Diário de Moscou"

Diz a mim o guia que nem todos aprendem a viver nesta cidade. Eu o entendo quando circulo por essas ruas onde só dúvidas caminham comigo -- meio heleno, ruminante, meditativo--, e vou trombando com  essa gente em insônia nervosa e latomia de descontentes. Deploro as tantas paredes onde estão pendurados retratos de angústia; tento fazer poesia, consolar aflitos, soprar esperanças por essas mesmas ruas em que os olhos das fechaduras riem e rabiscam a vida dos que vão passando e seguem para morrer na agitação dos dias.
          Diz-me o guia que o momento é peculiar. Surge o medo do golpe, desfilam soberanias, bloqueios econômicos, confusões republicanas, paixões exacerbadas. Os ciganos invadem a cidade, incomodam. Onde estavam até 1985? Incomodam-nos os dejetos que circulam, as amargas lembranças do equívoco afegão, os idosos que se postam nas passagens subterrâneas e esmolam e contam de dores inacabadas, fazem caras e bocas, e regurgitam as mentiras escondidas nas entrelinhas dos autoritários manuais. Somos surpreendidos pelos homossexuais saídos dos guetos, os anticomunistas, os anti-semitas, os anti tudo e anti nada. E é quando me engano por essas ruas, que percebo quão amargo é o cotidiano. Passo noites em claro querendo entender a avalanche que teima em explodir no canteiro central desse imenso jardim buocrático. Leio, releio. Não consigo definir o que é Moscou, quem são essas pessoas que passam apressadas e com olhares de ódio e desamparo aparentes e, certamente, que são aqueles que vagam pelas páginas amarelas dos alfarrábios que ninguém mais se importa em folhear.
          Pergunto a mim mesmo se devo continuar na masturbação de teses feuerbachianas, discutindo a materialidade do mundo e o empiriocriticismo, ou se vejo o Partido como algo intocável, acima de qualquer suspeita. Mas a pergunta é inevitável: que partido é esse? que partido é esse que se perde e acaba perdendo seu papel de vanguarda, reduzindo-se a um grupelho de líderes cabotinos?
          As discussões são acaloradas quando o assunto é o monopólio do poder. E só mesmo uma mudança radical para que o futuro não nos seja tão triste.
          A crise se espalha. As transformações na consciência social vão acarretando o surgimento de movimentos de massa da mais diversa orientação; vivemos a época da democracia de comícios, da liberdade que se traduz por "fazer tudo".
          Ah, Lênin! O que fazer com tua memória, minhas noitadas rurais, a imagem dos velhos "comunas" vagando pelas estradas tortuosas -- caminhos da danação de Alagoa Nova, meu berço --; os bois odiando o vermelho de minha roupa, o dial buscando a Rádio Central, o desejo de correr mundo e assentar o sonho no grande vão da Praça Vermelha, aonde estás deitado, vigiando a utopia que  criaste?
          Vejo agora essas ruas apinhadas, uma gente que cultua o ódio como se fora uma religião. Não encontro acalanto sequer na imagem dos meninos que se agitam entre corvos e pardais; nas pombas que arrulham nos beirais, nas  gárgulas enfeitadas. Vejo mistério dos becos e passagens subterrâneas.
          Sinto saudades do Brasil, falta dos cigarros, da cervejinha, do papo-furado sobre cultura; saudade daqueles amigos que pensavam carregar consigo toda a inteligência do mundo e butiquinizavam a cultura do país. Os amigos verdadeiros, os amigos que se foram e se perderam por essa causa que ainda tento abraçar, a poesia cantada pelas esquinas da cidade, as reuniões clandestinas nos arredores da Paulicéia, os porões da Universidade, as surpresas das esquinas, os bancos de praças infestados de percevejos.  
          Não sei quando voltarei. Vivo à mercê do Comitê Central e da burocracia existente dentro da burocracia. Por isso, sou obrigado a assistir a essa passeata ameaçadora, embriagando-me com a vodca clandestina, engolindo o blábláblá mal soletrado dos homens do "aparelho", lendo a disputa jornalística da descoberta de crimes stalinistas, vendo o PCUS se debatendo numa tentativa de manter a unidade do país; a defecção de líderes, os democratas que criticam Gorbatchov pelo bloqueio econômico imposto à Lituânia. E a perestróika -- que parecia irreversível, permitindo a mudança do sistema econômico e do regime de sujeição da sociedade em relação ao partido -- passando por um processo difícil, ainda que exija abnegação por parte de todos.
          Há quem espere milagres: reforma do sistema político, formação de um Estado Socialista de Direito, uma revolução da consciência. Acontece que a burocracia acaba impedindo qualquer passo nessa direção. Mediante a burocracia e no interesse da burocracia, se leva a cabo o principal ataque à perestróika. E todos falam do burocratismo com indignação e paixão: o funcionário do partido, o ator, o médico, o diretor de fábrica, o operário. E falam com insistência e tenacidade.
          O que é a burocracia, essa coisa invisível e incompreensível? Sabem dela, mas ninguém a vê. Seria um modo de pensar e agir, a falta de desejo de assumir responsabilidades? O parasitismo, a ineficiência? Preguiça, desejo de viver à custa dos que produzem valores materiais e espirituais?

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