terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Venedikt Erofeev, um bebum genial


Eu morava em Moscou  e trabalhava  na Rádio Central, onde fazia locução de programas para os países de língua portuguesa. 1990 era um ano complicado na vida soviética, um revirar constante de situações, notícias escabrosas vindo à luz, homossexuais saindo dos guetos, ciganos surgindo dos porões, agenciadores de prostitutas antenados às portas dos hotéis e estações ferroviárias. E enquanto alguns autores também vinham à luz, com seus livros reeditados ou editados pela primeira vez, algumas vozes se calavam. Naquele ano morria um escritor marginalizado, esquecido propositalmente, de uma força descomunal e que, a exemplo do cantor Vladmir Visotski, sua obra era escondida nas gavetas de muitos dos poderosos do Kremlin. Não podiam admitir, mas muitos desses o admiravam. Eu preciva noticiar seu desaparecimento. Não pude.

Quem é esse escritor marginalizado e perseguido pelo sistema soviético? Certamente aqui no Brasil ninguém, ou quase ninguém sabe de sua existência.

Venedikt Erofeev (Венедикт Васильевич Ерофеев; 24 Outubro 1938) era uma personalidade lendária. Em 1970 editou em dois exemplares datilografados sua novela Moscou-Petuchki (Москва – Петушки), que em poucas semanas circulou por toda Moscou, varou regiões indevassáveis, penetrou fronteira a fora.   

Dele falava-se constantemente, mas pouco o conheciam realmente, mesmo porque ele sequer gostava de qualquer popularidade, principalmente de paparicos. E como vivia? Como conseguia tempo para escrever?  Trabalhava permanentemente. Nas obras em que trabalhava, quando escrevia, deitado no beliche de um vagão que servia de moradia para construtores civis, chegavam perto dele e perguntavam: “O que escreves? Por acaso queres entrar para a Academia? Seja como for, bem sabes que não conseguirás. Melhor encher a cara de vodca, aqui conosco.”

Filho de “inimigo do povo”, nascido na região de Murmansk, depois do curso secundário mudou-se para Moscou onde tentou uma vaga na Universidade. Conseguiu-a, mas um ano e meio depois era excluído por não freqüentar as aulas de “Preparação Militar”. A partir daí (1957), trabalhou nas mais diferentes funções: carregador numa loja de produtos alimentícios, ajudante de obras na construção civil, guarda, sondador-perfurador geológico, bibliotecário, e vai por aí. Mas o único trabalho que realmente agradou-lhe foi o de ajudante numa expedição parasitológica, na estepe Golodnaia (estepe da Fome), no Uzbequistão, e o de ajudante de laboratório de pesquisa científica para a luta contra insetos voadores e sanguessugas, no Tadjiquistão.

Começou a escrever a partir dos cinco anos. Sua primeira obra digna de nota são os Escritos de um psicopata, iniciados aos 17 anos. É a mais volumosa e absurda dentre tudo o que escreveu. Em 1962 Boa Nova, obra que alguns “especialistas” consideraram uma “confusa tentativa de criar um Evangelho do Existencialismo Russo”, tal como Nietzche, “virado do avesso”. Escreveu vários artigos sobre os noruegueses Hamsun e Byerson, assim como acerca dos dramas da última fase de Avicena. Todos eles foram recusados pelos editores porque eram “metodologicamente horripilantes”.
Nos últimos anos, tudo o que escrevia ia se acumulando em dezenas de cadernos e grossos manuscritos. Sua doença (câncer na garganta), revelada em 1985, adiou indefinidamente a concretização de seus planos.

Foi submetido a duas complicadas cirurgias, recebia uma mísera pensão por invalidez. Até os 50 anos, nem em sonhos poderia pensar em seu reconhecimento como escritor. Reclamava que rebaixaram seu grau de invalidez. Dos 50 rublos que recebia, passou a receber 26. No atestado escreveram que “assim e assado”, “pode ter por ocupação uma atividade de escriturário ou conforme os seus hábitos profissionais”. Mas ele acabava se conformando: “Pagam-me exatamente tanto quanto minha Pátria considera necessário.”

Seu aparecimento diante dos guardiões das regras éticas da escrita, por certo deixou alguns chocados pelos “mimos” de sua linguagem.  Não reclamava, apenas dizia que os maiores adversários de suas expressões, tanto na imprensa como na literatura, eram exatamente os que mais as utilizavam em suas reuniões e plenárias. Tinha idéias para tudo. Dissertava sobre a embriagues, sobre o sexo, sobre os poderes, sobre as mulheres. Em seu Moscou-Petuchki, único livro editado, fala das mulheres:

“Eu era contraditório. Por um lado gostava que elas tivessem aquela cintura, já que nós não temos cintura nenhuma. Isso provocava em mim... como dizer? Volúpia? Sim, despertava em mim volúpia. Mas por outro lado, elas retalharam Marat a navalhadas. Ora, Marat era incorruptível e não deveria ter sido retalhado! Só por isto já matava toda a volúpia. Por um lado, como Karl Marx, eu gostava da fraqueza delas, isto é, elas são obrigadas a mijar de cócoras, e isso agradava-me, enchia-me... bem, de quê? De volúpia? Sim, algo assim. Mas por outro lado, foram elas que dispararam  contra Ilitch! Isto matava novamente a volúpia: podem ficar de cócoras, mas para que disparar contra Ilitch? Seria ridículo falar de volúpia depois disto.”

Em 1973, Moscou-Petuchki foi editado em Israel, quatro anos depois na França, RFA, Estados Unidos, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Polônia, Iugoslávia. Em todos os países obteve sucesso, mas em Moscou ainda passava despercebido “oficialmente”.

Perguntado se se considerava um dissidente, respondia que não, que nunca tivera nada a ver com a história. Sempre viveu à margem da dissidência. A antimusicalidade dos dissidentes afastava-o, suas vozes não criavam harmonia.

Venedikt morreu. E quase não se noticiou. Quando propus. na Rádio Central, dizer uma notinha rápida sobre Erofeev, Pugachov, o editor, alertou-me. Não era salutar, não devia atiçar um fogo em vias de se apagar.
 
“E se eu morrer um dia  – e morrerei brevemente --  sei que morro sem ter aceitado este mundo,. Tê-lo-ei aprendido de perto e de longe, por fora e por dentro, mas morro sem o ter  aceitado. Morrerei e Ele perguntar-me-á: “Gostaste de viver por lá? Foi bom ou o quê?”. Eu ficarei em silêncio, de olhos baixos. Essa mudez é conhecida pó todos os que sabem o que acontece quando se sai de uma bebedeira duradoura e pesada. Não é a vida de um homem uma momentânea bebedeira da alma? Todos nós vivemos como que embriagados, só que cada a seu modo: uns bebem muito, outros bebem menos. E o efeito é diferente em cada um: um ri-se nas barbas deste mundo, outro chora ao peito do mundo. Uns já vomitaram e sentem-se melhor, mas outros só agora começam a ter vômitos. E eu, o que sou? Já provei muitas coisas mas nenhuma deu resultado. nem sequer me ri pra valer uma única vez, nem sequer vomitei uma única vez. Eu, que experimentei tanto neste mundo, tanto que já perdi a conta e a seqüência, estou mais sóbrio do que ninguém; só que já não me faz nenhum efeito... “Porque estás mudo? – pergunta-me Deus, envolto em relâmpagos azulados. O que responder? Continuarei assim, calado, calado...”

Espero que lá no alto Venedikt Erofeev tenha resolvido falar, para alegria de anjos e santos.

PS.  Traduzi o seu Moscou-Petuchki. Cadê editor?
 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Os passos de um penitente


Há no Brasil um rosário de histórias, muitas vezes incríveis, que passam despercebidas,e que poderiam muito bem suprir autores na construção de suas personagens. Há um mundo urbano a ser descoberto, há um mundo rural fantástico, que já nos deu autores magníficos como Ricardo Guilherme Dicke, Cornélio Penna, e continua apresentando como é o caso de Nicodemos Sena.
Pois bem, nos anos quarenta  surgia em peregrinação por alguns estados nordestinos uma figura penitente chamada Pedro Batista que acabará sendo a  mola principal para o desenvolvimento de uma pequena localidade baiana chamada Santa Brígida.
Não teve o mesmo destino de Antonio Conselheiro, e esse penitente que pregava e curava na terra natal de Maria Bonita, acabou por entrar para a história daquela gente, que até hoje o venera.
O jornalista e escritor Humberto Mesquita, sempre muito atento às coisas de Brasil (quem não se lembra do mapeamento do Brasil, que ele fez quando atuava no SBT, chamado “Isto é Brasil”?) foi buscar na história desse penitente os subsídios para escrever o livro Santa Brígida, onde se entrecruzam realidade e ficção.
Em seu livro a história começa no interior paraibano. Uma desilusão amorosa faz com que a personagem (que aqui atende por Paulo Calixto) que tinha tudo para seguir o mesmo destino de seus pares do campo, do eito da cana-de-açúcar, empreenda uma viagem pelos entrincheirados caminhos nordestinos, transformando-se em caixeiro-viajante, cargo que o tornará assassino e mudará a sua vida radicalmente.
O autor não encaminha sua personagem para o óbvio. Ou seja, para “esquentar o enredo”, poderia ter apimentado a situação com enfrentamentos políticos, religiosos, mortandades. Não, é o entendimento que permitirá que a personagem se desenvolva e acabe construindo uma história de pura poesia.
Humberto, que nos acostumamos a fazer poesia no vídeo, constrói em seu Santa Brígida, um verdadeiro poemário.

Serviço:  Santa Brígida – Humberto Mesquita, Ibrasa, 2009

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Deus de Caim, Ricardo Guilherme Dicke

Há que render elogios rasgados a um escritor que vê na boa literatura uma forma, ainda, de salvar o mundo. Nicodemos Sena não é somente um bom escritor, mas tomou para si a incumbência de rastrear a boa literatura e, o que é difícil, sem se submeter a qualquer apoio de ordem governamental. Criou a editora LetraSelvagem e com ela começa a mostrar um panorama literário do mais alto nível, reunindo autores como Olga Savary, Santana Pereira, Caio Porfírio Carneiro, Marcelo Ariel, o excelente poeta Edvaldo de Jesus Teixeira e Ricardo Guilherme Dicke. 
Todos aqueles que lêem a obra de Guilherme Dicke não economizam palavras para falar de suas qualidades literárias, da carga semântica que há num escritor que viveu a amargura do ostracismo, algo que, embora estranho, parece tão “natural” em se tratando de um país chamado Brasil, que pouco zela por sua memória e que apenas se “liga” naquilo que chamamos de imediatismo, naquilo que vira moda e certamente não ficará nos anais da arte de escrever. Sim, a mídia divulga agora o que amanhã não mais interessa e resta a nós, que ainda nos importamos com a literatura, revirar mundos e fundos para dizer dos que resistem e insistem em escrever.
Acaso fizermos uma relação de autores de qualidade que foram esquecidos, teremos que preparar um lençol e deixar do lado um balde, porque só nos resta chorar: Samuel Rawet , autor de Contos do Imigrante, que morreu solitário, em 1984, na cidade satélite de Sobradinho, perto de Brasília, e que, pese sua loucura, sua mania anti-semita, não poderia ter sido tão amordaçado;  Maura Lopes Cansado, autora de Hospício é Deus e O sofredor do ver, que amargou as agruras dos hospícios da vida; Salim Miguel, autor de Nu na escuridão, que poderia ser melhor observado, continua lá pelos lados de Santa Catarina sem que se saiba do peso de sua obra. Enquanto isso autores de obra irregular vão sendo estudados, apresentados como supra-sumo, encastelados. Um monte de fedelhos querendo ser escritores.
E por que seria diferente com Dicke, que transferiu-se do Rio de Janeiro para seu Mato Grosso natal, publicando de forma independente (os dois romances O salário dos poetas e  Rio abaixo dos vaqueiros)? 

Como surge Ricardo Guilherme Dicke no cenário literário nacional?

A história todos sabem: em 1967, o prêmio Walmap -- que fora idealizado em 1964 pelo banqueiro José Luiz de Magalhães Lins e o escritor Antonio Olinto --  premiou esse escritor fabuloso, ao lado de Oswaldo França Júnior, com uma obra que satisfazia em cheio o objetivo do certame, que era descobrir obras acima do chamado nível comum.
Deus de Caim, a obra de Dicke foi recebida com entusiasmo. Era mesmo diferente. Na linguagem de aparente simplicidade, na elegância sutil de personagens que nada tinham de provincianas. Naquele ano havia sido lançado Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques que em duas semanas vendera 8000 exemplares, que também se alicerçava em laços de família e suas previsões de um fim anunciado; o Brasil perdia Guimarães Rosa e deixava de ser República dos Estados Unidos do Brasil para se tornar República Federativa do Brasil; acontecia a Guerrilha de Caparaó, era mesmo o ano da Psicodélia. 
Essa acolhida, portanto, refletia o momento. E esse momento está no livro de Dicke: tempo de desencanto por um país que não era mais um mundão de porteiras abertas; de um sertão que não era mais sertão, tempo em que a arte vertia lágrimas de dilemas, e onde sexo e morte não se estranham, não se fronteirizam. Naquelas páginas o mito bíblico homicida, fraticida, reaparece nas figuras dos gêmeos Jônatas e Lázaro, contaminados pela inveja, pelo amor/desamor, que gera situações conflituosas. É o mito de Caim e Abel, que por sua vez é uma reinterpretação do mito babilônico de Dumizi e Emkidu, onde o ciúme é o propulsor dos conflitos entre os povos sedentários (agricultores) e nômades (pastores).
O livro é inteiramente varado por frases elegantes, estonteantes mas peca muitas vezes pelo que podemos intuir como exageros narrativos, citações constantes. Claro que não fogem do contexto, mas acabam por quebrar o ritmo da leitura. Creio que é o pecado de parte importante de escritores quando começam a demonstrar erudição. Mas Dicke está perdoado, deve ser perdoado, porque no fundo, no fundo, nada disso que falo é importante, nada disso pode comprometer a sua escrita que é um alento, um sopro curativo, revigorante.
E já que a LetraSelvagem teve a ousadia – que coisa magnífica – de trazer a público essa obra monumental de Dicke, esperemos que nos traga dele tudo aquilo que nos foi negado, ou seja, as obras que ficaram no esquecimento.  
 
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