quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Em defesa do artista


Um dia Marisa Gata Mansa contou-me, entristecida, de uma passagem sua na Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro. Depois de sair, milagrosamente, de um longo período de enfermidade, resolveu fazer o que sabia -- cantar -- e procurar os meios que poderiam lhe dar respaldo. Na Secretaria foi atendida por um garotão que disse: “a senhora deixe um currículo que o examinaremos”. Bah, o idiota, atuando na Secretaria de Cultura de uma cidade como o Rio de Janeiro, que sempre quis ser a Capital Cultural do país, desconhecia o nome de Marisa e sua trajetória na música brasileira! Uma piada! 
Quando me contava isso, seus olhos enchiam-se de lágrimas, até porque não entendia tanto descaso, não aceitava esses assassinatos em vida de tantos outros artistas.      
O episódio é relembrando aqui, porque fui surpreendido recentemente com a notícia de que Carmélia Alves teria ido para o Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro.
Conversei com Cervantes, velho amigo -- meu e dela. Sim, era verdade. Sem condições de arcar com as despesas do apartamento alugado em Copacabana, não teve outra opção.
Como Carmélia, outros tantos artistas penam com o descaso. Público e Particular. Alguns nomes conhecidos já partiram dessa sem que nem mesmo a imprensa noticiasse.
Em São Paulo um desses sabichões que vivem para se apossar do que não lhe pertence, deixou os artistas de São Paulo sem sua Casa, o que existe hoje é uma rua com o nome de “Casa do Ator”. Ironia.
Isso será sempre assim. Os políticos estão mais preocupados com suas questões pessoais ou em colocar seus nomes em placas do que oferecer qualquer ajuda no sentido de preservação da memória nacional. Eles nem sabem do que se trata. E o sei por experiência própria, dado que tive oportunidade de discutir com vários deles.     
Quando dirigi os eventos na cidade de São Paulo criei -- sem que houvesse interferência de gabinetes -- um espaço musical onde vários dos nomes esquecidos puderam se apresentar, entre os quais Moreira da Silva, Ademilde Fonseca, Emilinha Borba, a própria Marisa Gata Mansa.
O que fazer hoje em dia? Esperar que apareça uma Carmem Costa e insista na decisão de requerer o seu tombamento? Pena que no Brasil tombamento signifique derrocada, queda. Sim, tombar no Brasil é derrubar, literalmente.
Creio que agora é o momento de nos juntarmos e requerermos o tombamento (com direito a uma boa pensão) de nomes como Carmélia Alves, Carminha Mascarenhas, apenas para lembrar de duas grandes cantoras que estão no esquecimento. Quem topa?
 
        



Fidel, os golfinhos e a “kremlinologia intestinal”

O americano Jeffrey Goldberg foi convidado por Fidel Castro para um dedo de prosa. E publica uma fala do que ele considera como “o mais extremo dos momentos” em que esteve na companhia do velho líder cubano: “O modelo cubano não funciona mais, nem mesmo para nós”. O mundo leu e acabou exclamando um “oh” de surpresa. Mas teria Fidel dito tal frase? E tem mais: ao pedir explicações a uma colega sobre a declaração ouvida, lá vem a patacoada: “Fidel está começando a se reinventar como estadista veterano”.

Parece que a coisa não foi mesmo assim, tanto que o próprio cubano andou chuleando as mal alinhavadas frases do repórter.

Uma pena. E há que perguntar: como é que um sujeito tem uma oportunidade de ouro dessas e a deixa escapar?  Como é que um sujeito desses afirma que seu interesse inicial num almoço era ver Fidel comer e fazer uma “kremlinologia intestinal”? (sic).  

Aquele “entrevistado" não parece muito com Fidel, não pode ser o mesmo Fidel que conheci nos idos dos 80 e tornei a ver em algumas oportunidades outras.

Fidel agora se preocupa com shows de golfinhos?
Que pena, mesmo! Jeffrey Goldberg perdeu a chance de fazer uma das mais importantes matérias do século.

domingo, 26 de setembro de 2010

Trecho do livro de Memória

(...) Alguém me diz que Alagoa Nova não existe, que é o quintal de Campina Grande. Bah! Uma pena que os orgulhos regionais meçam todas as sombras estranhas pela mesma rasa, alegando que enquanto Campina Grande é um desaforo capitalista, uma afronta, Alagoa Nova não passa de um discreto padrão provinciano, sem eira nem beira. Pode ser, mas é onde se encontra a calma que está na janela onde alguém mastiga demoradamente uma batata assada; no calçadão da igreja, onde o eu poeta meditava e observava as barreiras avermelhadas do Balanço; na sombra do banco onde a velha explica ao menino o teor do catecismo; no olhar da menina que conversa com sua boneca de pano; em todas as pessoas repetidamente alheias ao tempo, porque sabem que o tempo continuará a passar, paulatina e inexoravelmente, e é a ele que as pessoas devem estar atentas. Pessoas sem pressa para assistir à vida, porque a vida está lá, embora até nem saibam. Mas isso se aprende, o tempo ensina. Por isso é que não se deve correr. É preciso que cada um carregue sua bagagem e, dentro dela, a herança dos seus antepassados.

Alagoa Nova existe, sim. Não é um mero quintal. Uma hora, quando menos esperarmos, se abrirá ao progresso sem perder a calma. Cada um se orgulhará de ser um cidadão alagoanovense, de viver uma vida moderna e praticamente rural.

Isso pode parecer sem sentido dentro do movimento frenético de hoje. Fará mesmo algum sentido? Haverá calma em algum lugar? Certamente não somos chineses, taoístas, para exercermos em silêncio a forma tradicional de movimentos lentos do corpo que convidam à meditação enquanto ajudam a sua elasticidade. Somos alagoanovenses, paraibanos, brasileiros. Mais que tudo, alagoanovenses. Na cara e na coragem, na sorte e na vida. Por isso calados, distantes, meio estrangeiros, aruás do brejo, como me apelidaram um dia.

                                                              ***
Estamos em junho do ano 2001, sexta-feira, 1°. Faz tempo que penso em escrever sobre Alagoa Nova. Já imaginei dia, mês, mas na mão direita parece ter um esporão fincado que me impede fazê-lo. Mas decidi: embora doa, devo fazê-lo, até porque o relato acabará compondo uma trajetória de vida, com marcas que por pouco não foram lavadas ou levadas na última enxurrada do Mamanguape, aquela que não houve e nem sei se haverá.

Logo cedo esbocei reações de amor à cidade natal. Recusava-me sempre a sair, passar dias no cariri. Quando acontecia, batia o pé, chorava, porque já adorava aquela nonchalance alagoanovense. Esse apego era tal que cresci achando que o mundo começava e terminava ali.

Mas o tempo foi passando, o ângulo visionário se abrindo, as pessoas se revelando, tudo ficando aborrecido e tacanho. Mas eu era mesmo um alagoanovense com manias chauvinistas e só muito mais tarde é que comecei a pensar Alagoa Nova como uma cidade onde não se permitia nenhuma lembrança. Para mim, estava sempre em permanente demolição, conspirando contra qualquer memória. Não somente uma demolição física, mas também moral e de costumes. Era esse seu gozo, seu espetáculo, sua principal característica. Em algum momento cheguei a imaginar o contrário, hoje não, penso que é uma legitimidade. E, assim como há povos que constroem, há os que destroem; há povos que têm na destruição um sentido de vida, assim como alguns o encontram na construção.

Seria o alagoanovense um povo demolidor? Por que? Para ser fiel a sua própria história, que é quebrada, quase nada? Mas Alagoa Nova não é uma cidade de terremotos, de sismos, a natureza é pacífica. Por que não responde a um ideal? Embora não queira aceitar aquela idéia de quintal da grande cidade, não podemos ignorar que ela se converteu num lugar meio que de passagem, intermediário, como se fora um lugar para nunca se fixar, se estabelecer, parecendo ser apenas o caminho para Campina Grande. Passar por ela e continuar caminhando. 

Os prédios ainda são inspirações ou aspirações de algo que não chegou a ser feito. Por vezes a víamos melhorada, colorida, no entanto sempre esteve inacabada. Não se concluiu. Ou muito pouco. Por isso talvez sonhe com o dia em que alguém possa inaugurá-la, alguém que tenha amor telúrico, vontade política, que rasgue a terra vermelha dos canaviais e ligue-a às terras das bagaceiras através de uma estrada que a aproxime cada vez mais do mar.

Em verdade, tenho lembranças amargas de demolições na minha infância: sobrados, casarões, igrejas, fachadas de azulejos portugueses, janelões, monumentos. Eram trastes? Talvez, mas tinham sentido, diziam algo.

Minha casa, a casa onde nasci, virou ruína. Pagou pela sina de nunca ter sido realmente completada. O banheiro sempre com cara de tapera; a cozinha, vez por outra faltando um pedaço; o corredor nunca rebocado; o resto era só taipa, engenharia do século dezoito. No entanto nada me regozijava mais do que a vida naquele recanto, a convivência pacífica com os morcegos, baratas, camundongos; o sabugueiro em flor, o flamboiã, a laranjeira-cravo. Eu ficava ali, no quintal, me entregando às mais doces fantasias, me vendo protagonista de algo: amava, casava, fazia amor, lia Os Miseráveis, fingia ser Jean Valjen. Era o único lugar verdadeiramente íntimo, onde tomava minhas decisões.

Aquela casa da Epitácio Pessoa, 115, era amarela, sala ampla, chão em lajotas carcomidas, corredor, cozinha com pilão, moinho, potes d’água sob os quais se escondiam roliços cururus. Era o meu mundo.

Gostava da leve umidade das tardes. No tempo das chuvas, sonhava com um rio serpenteando no quintal, os sapos em festa, as matutas vindo para a feira dominical, incensando a casa de perfume barato, provocando um rumor confuso de vozes e frases erradas. Matutas esbeltas, peitos redondos, atrevidas e insinuantes. No quintal, os cavalos. Parecia uma estalagem de Pushkin. Ali meu pai encilhava mulas e eu permanecia com o olhar fixo através da soleira da porta, de onde minha mãe vez por outra me mostrava mil constelações no lúgubre céu. O grande flamboiã que eu mesmo plantara, dominava; era meu companheiro predileto. Com ele falava e confessava meus problemas e anseios.

Aos sábados me preparava para o catecismo do Padre Borges, ministrado por Niná Colaço, que passava o tempo a resmungar ave-marias e a observar o asseio dos pivetes, cabelos, joelhos, unhas e falva de Deus, do pecado, principalmente. No dia seguinte eu corria para Edvirges, a velhinha querida do grupo escolar, para questionar as palavras de Niná, mas ela era mais antiga e eu acabava me conformando com o fato de que a única coisa calamitosa do mundo era mesmo o pecado. Conheci, portanto, um Deus carrancudo, vingativo, pronto para punir a qualquer momento. Mas minha mãe interferia e falava de um Deus diferente: bondoso, caridoso, o que criava em minha cabeça uma confusão danada.

E seguíamos assim: pecados, proibições, orações. As descobertas eram temerárias. Os temas referentes à sexualidade só muito tarde passaram a fazer parte de nossas conversas na Praça Epitácio Pessoa. Havia coisas que eu gostaria de entender mas guardava para mim mesmo, até o dia em que alguém comentou do pênis do Padre Borges. Que absurdo! O padre tinha pênis? Excitava-se? E o pecado? A cabeça baqueou. Adauto Silva, tabelião público, usou um termo chamado “sublimar”. O que era mesmo sublimação? Entendi que Padre Borges não pensava em sexo (ou não se excitava) porque sublimava. Perguntei a Xixi, a preta velha querida e sabedora de tudo. Ela alarmou-se, achou que eu estava pecando por palavras. E piorou sua indignação quando perguntei se o padre soltava pum. Foi um deus-nos-acuda. Entendi que um santo homem não podia soltar puns. Mas se o Padre Borges não soltava puns, por que se irava? Xixi dizia que era uma ira santa, a mesma ira de Deus (...).

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Diário de Moscou

Trecho do livro "Diário de Moscou"

Diz a mim o guia que nem todos aprendem a viver nesta cidade. Eu o entendo quando circulo por essas ruas onde só dúvidas caminham comigo -- meio heleno, ruminante, meditativo--, e vou trombando com  essa gente em insônia nervosa e latomia de descontentes. Deploro as tantas paredes onde estão pendurados retratos de angústia; tento fazer poesia, consolar aflitos, soprar esperanças por essas mesmas ruas em que os olhos das fechaduras riem e rabiscam a vida dos que vão passando e seguem para morrer na agitação dos dias.
          Diz-me o guia que o momento é peculiar. Surge o medo do golpe, desfilam soberanias, bloqueios econômicos, confusões republicanas, paixões exacerbadas. Os ciganos invadem a cidade, incomodam. Onde estavam até 1985? Incomodam-nos os dejetos que circulam, as amargas lembranças do equívoco afegão, os idosos que se postam nas passagens subterrâneas e esmolam e contam de dores inacabadas, fazem caras e bocas, e regurgitam as mentiras escondidas nas entrelinhas dos autoritários manuais. Somos surpreendidos pelos homossexuais saídos dos guetos, os anticomunistas, os anti-semitas, os anti tudo e anti nada. E é quando me engano por essas ruas, que percebo quão amargo é o cotidiano. Passo noites em claro querendo entender a avalanche que teima em explodir no canteiro central desse imenso jardim buocrático. Leio, releio. Não consigo definir o que é Moscou, quem são essas pessoas que passam apressadas e com olhares de ódio e desamparo aparentes e, certamente, que são aqueles que vagam pelas páginas amarelas dos alfarrábios que ninguém mais se importa em folhear.
          Pergunto a mim mesmo se devo continuar na masturbação de teses feuerbachianas, discutindo a materialidade do mundo e o empiriocriticismo, ou se vejo o Partido como algo intocável, acima de qualquer suspeita. Mas a pergunta é inevitável: que partido é esse? que partido é esse que se perde e acaba perdendo seu papel de vanguarda, reduzindo-se a um grupelho de líderes cabotinos?
          As discussões são acaloradas quando o assunto é o monopólio do poder. E só mesmo uma mudança radical para que o futuro não nos seja tão triste.
          A crise se espalha. As transformações na consciência social vão acarretando o surgimento de movimentos de massa da mais diversa orientação; vivemos a época da democracia de comícios, da liberdade que se traduz por "fazer tudo".
          Ah, Lênin! O que fazer com tua memória, minhas noitadas rurais, a imagem dos velhos "comunas" vagando pelas estradas tortuosas -- caminhos da danação de Alagoa Nova, meu berço --; os bois odiando o vermelho de minha roupa, o dial buscando a Rádio Central, o desejo de correr mundo e assentar o sonho no grande vão da Praça Vermelha, aonde estás deitado, vigiando a utopia que  criaste?
          Vejo agora essas ruas apinhadas, uma gente que cultua o ódio como se fora uma religião. Não encontro acalanto sequer na imagem dos meninos que se agitam entre corvos e pardais; nas pombas que arrulham nos beirais, nas  gárgulas enfeitadas. Vejo mistério dos becos e passagens subterrâneas.
          Sinto saudades do Brasil, falta dos cigarros, da cervejinha, do papo-furado sobre cultura; saudade daqueles amigos que pensavam carregar consigo toda a inteligência do mundo e butiquinizavam a cultura do país. Os amigos verdadeiros, os amigos que se foram e se perderam por essa causa que ainda tento abraçar, a poesia cantada pelas esquinas da cidade, as reuniões clandestinas nos arredores da Paulicéia, os porões da Universidade, as surpresas das esquinas, os bancos de praças infestados de percevejos.  
          Não sei quando voltarei. Vivo à mercê do Comitê Central e da burocracia existente dentro da burocracia. Por isso, sou obrigado a assistir a essa passeata ameaçadora, embriagando-me com a vodca clandestina, engolindo o blábláblá mal soletrado dos homens do "aparelho", lendo a disputa jornalística da descoberta de crimes stalinistas, vendo o PCUS se debatendo numa tentativa de manter a unidade do país; a defecção de líderes, os democratas que criticam Gorbatchov pelo bloqueio econômico imposto à Lituânia. E a perestróika -- que parecia irreversível, permitindo a mudança do sistema econômico e do regime de sujeição da sociedade em relação ao partido -- passando por um processo difícil, ainda que exija abnegação por parte de todos.
          Há quem espere milagres: reforma do sistema político, formação de um Estado Socialista de Direito, uma revolução da consciência. Acontece que a burocracia acaba impedindo qualquer passo nessa direção. Mediante a burocracia e no interesse da burocracia, se leva a cabo o principal ataque à perestróika. E todos falam do burocratismo com indignação e paixão: o funcionário do partido, o ator, o médico, o diretor de fábrica, o operário. E falam com insistência e tenacidade.
          O que é a burocracia, essa coisa invisível e incompreensível? Sabem dela, mas ninguém a vê. Seria um modo de pensar e agir, a falta de desejo de assumir responsabilidades? O parasitismo, a ineficiência? Preguiça, desejo de viver à custa dos que produzem valores materiais e espirituais?

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Memórias

Trecho do livro de memórias, em preparo

(....) Teócrito,  Aeroaldo, Fausto, Amando, Evaldo Lira (nosso Inseto), Estácio, Josué Graciano, Celeida, Nilzinha, Toinho Bezerra, Tita, Socorro Bernardo, Lidelba, Erlanda, Maria Victor, Marleide Pereira e tantos outros, todos desaparecendo de nossas vidas, buscando caminhos para se tornarem gente decente. E eu crescendo, ouvindo incelenças, sons de ancoretas, imagens fantásticas se abrindo num sacrário de miçangas, corpos subindo para a glória; uma batida distante de zabumba, uma estrela gigante no céu, um galho de alecrim esbanjando perfume da orelha do matuto, uma alma pisando na encruzilhada onde o corpinho de meu irmão sem nome jazia lá nas bandas do sítio Preguiçoso.

As incelenças, os mortos em redes, o caixão da prefeitura... A morte tinha mesmo um significado medonho para mim. Os amigos partiam, os enterros se sucediam, velórios de coisas ditas e inconclusas. As flores não podiam suprir as rosas que nunca foram enviadas em vida. Mas depois de uma morte, da saída do cemitério, tudo voltava ao normal. A lua continuava surgindo faceira, a poesia sussurrando pelos ares, o horizonte cada vez mais divisor: o mundo que começava em Alagoa Nova, ainda terminava naquela linha sempre azulada, que se perdia diante de nossos olhos.

Até hoje sigo pensando que não enviamos flores para Lindolfo Barbosa, Josaphat Rodrigues, Jayme Floro, Oscar Veloso, Zé Basílio, Elisbão, Dona Mintina, Olegário Fernandes, Crescêncio, Joaquim Cândido. E me pego com as mãos na cumbuca, dizendo deles o que jamais disse em vida. Mas quem era mesmo essa gente que a história sepultou? Como viveram? Do que viveram? O que fizeram e quais os exemplos que conseguiram deixar?  Por exemplo, nunca entendi a avareza de Lindolfo Barbosa, embora gostasse de seus afagos e de quando me chamava “Luleiro”. Foi a figura que mais me marcou. Seu rosto era igual aos daqueles retratos do século dezoito, pendurados nos velhos casarões de engenho. Estava sempre atarefado no sítio Capim de Planta, cultivando arroz e araruta. De repente a idade não mais lhe permitiu descer as ladeiras do engenho Assis. Foi homem de muitas mulheres, ainda que eu só tenha conhecido duas: Maria, que vivia na cidade, e Minervina, com uma penca de filhos, na lama do Capim de Plantas. A última vez que vi Lindolfo foi num caixão. Era uma tarde chuvosa e úmida como o sítio em que viveu.

domingo, 19 de setembro de 2010

A minha tríade perfeita

Há um momento em nossas vidas que achamos que nada mais resta, que as coisas vão perdendo o sentido. Não há religião que dê jeito e, embora não entremos em depressão, ela quase nos chega à porta, devagarinho. Eu estava assim, as coisas não aconteciam, uma porção de projetos que não davam em nada.  Minha mãe sabia que havia algo de errado em mim mas não tinha palavras para me confortar porque sua simplicidade era maior que ela mesma e as palavras não lhe chegavam conformemente. Mas dizia que algo de bom estava para acontecer. E acertou em cheio. Quando Laís nasceu o mundo me sorria e outro homem também nascia. Laís foi minha luz, a estrela que passou a me guiar em constância, foi minha razão de viver. Ela nada sabe, mas ainda hoje devo-lhe isto, devo-lhe pelo fato de ter-me devolvido à vida.
Fiquei bobo, tonto, enchi a cara. Seu nascimento foi notícia para todo lado, não foi o nascimento de uma anônima. E todos queriam saber dela, ver suas fotos, enfim. Não conseguia afastar-me, queria ouvir seu choro, dava o mundo por um riso seu. Sofria quando adoecia, varava noites se fosse preciso. Isso talvez só entenda quem já foi pai.
É curioso todo esse derramamento e meus amigos intelectuais ainda hoje fazem gozações desse tão arraigado sentimento que sempre tomou-me. Mas em todas as rodas, em todos os shows, em todas as viagens havia sempre uma pergunta: como está Laís? E assim foi sempre, pessoas que nem a conhecem. 
Um grande sofrimento foi quando tive que partir para Moscou. Era tão pequena. Não foram poucas as vezes em que me peguei matutando, querendo desistir da viagem porque achava que iria me esquecer. Na então capital soviética a angústia me tomava e acabou por piorar quando recebi a notícia da morte de minha mãe. Os trens todos de Moscou passaram por cima de mim. Mas quando chorava o rostinho de Laís me aparecia em sonho dizendo que estava tudo bem.
O tempo passou e me dou conta de que nunca consegui escrever-lhe um poema. No fundo, acho que ela  é mesmo o meu poema melhor acabado.   
Agora chegaram Yuri e Henri, as rimas que faltavam no poema. Laís é mãe de Yuri e Henri, os gêmeos que me tornaram, de novo, um bobo. E o mais incrível é que chegaram num momento difícil de minha vida. Mas como aconteceu quando sua mãe nasceu, eles me restituíram também a alegria de viver. E vivo assim para amá-los. É minha tríade eterna.
Do livro de memórias

(...) A cidade vivia sem grandes emoções. Se nada acontecia na Epitácio Pessoa, dava uma passada na praça central, onde certamente estavam os rapazes e as garotas, com idade entre os dezoito e vinte, em animadas conversas, ou então tocando violão. Havia os charmosos os, conquistadores, os elegantes, os matemáticos: Estácio Graciano, Zé Fausto, Teócrito Leal, Nilton Bezerra, seu irmão Toinho, Evaldo Lira. As garotas? Margarida Germano, Lidelba e sua irmã Erlanda, Socorro Maul, Nilzinha, Zenaide Mendonça, Eurides Torres, Maria e Eulália Vitor, as mais meninas como Ana Maria, Graça Bernardo, Vânia...

Um momento mágico era quando se iniciavam os preparativos para a festa do santo padroeiro. A cidade se enfeitava com parques, pavilhões, bazares e, principalmente, com a beleza trigueira das roceiras. Lembro-me do Parque Maia, do mestre Olívio, de seu Medeiros e da última festa que presenciei: acordei cedo e descobri que todos os brinquedos haviam partido, indo embora o sonho, o cachorro-quente do mestre Olívio, os jujus, as canoas, a roda gigante, os pastoris, os leilões, a amplificadora com seus “postais sonoros”, o fim de minha inocência.

Quando a vida voltava ao normal, Dona Joana continuava vendendo seus bolos e cafés; João Sapateiro batendo sola de sapato; Horácio Sobral sujando o ar com o pó da madeira de sua movelaria; Zé Rocha pendurado na janela, instigando a garotada; seu Paizinho aplicando injeções; Mané Buião, ao lado do bilhar, tossindo, tossindo, sem controlar a maldita tuberculose que o matava diuturnamente; Zé Floro, sentado em seu “escritório” remendando notas velhas; a “sopa” de Supimpa subindo para Campina Grande; o velho Irineu com sua jumenta de estimação enchendo as cisternas e potes da comunidade; Pedro Macena contando estórias mirabolantes e tocando sua gaita; Loré Barata Preta embriagando a vida pelos monturos; Tonha Doida, de cara rosada de papel crepom, conversando com seus fantasmas pela rua grande; Zé do Pife, com seus dentes bichados, atendendo aos pedidos da garotada; e no velho mercado Totó de Sebo, senhora absoluta, tirava de sua trempe um esquisito caldo com cheiro de gordura de porco, misturando-se ao fedor de urina vindo do beco, invadindo o lixão da prefeitura. Na lembrança, o último carrossel de minha vida. 

Memórias

Trecho de livro de memórias em preparo

(...) 

Cacaso, o poeta, falava de um brasileiro muito conhecido, mas pouco observado, aquele de estatura mediana. Hoje eu compreendo que ser um brasileiro acabado é ser alagoanovense. Vejo que as nações elegem ciosamente seus filhos exemplares e os honram como tais. A Inglaterra tem Shakespeare, a Itália um Dante, a Espanha tem Cervantes. Todos encarnam respectivamente o gênio da pátria que os viu nascer.  Quem disse isso? Miguel Torga?  Alagoa Nova tem a mim. A mim? E quem mais se iguala a mim, senão, com toda certeza, um outro alagoanovense? Vejamos: Gonzaga Rodrigues, Teócrito Leal, Toinho Bezerra, Eudes Barros, José Saldanha, Jeová Colaço, Péricles Leal, Analice Caldas, Padre José Borges de Carvalho,  Wills Leal, Evaldo Lira,  um Estácio Graciano, que era para mim o símbolo de uma geração, e na conta de alguns desses terem morrido, acrescentemos ao time um filho postiço: Clodoaldo Muniz. Todos devendo ser honrados. E sabe por que? Porque nenhum como nós testemunhou tão vincadamente os estigmas de nossa gente, no melhor e no pior. Embora muitos reconheçam que somos poucos, com a velha mania de anular, de achar que somos tão anódinos como qualquer anônimo brasileiro que nasce no Quixadá, cresce ao deus-dará, corre seca e meca, atravessa as águas do Orós, do São Francisco, e regressa para casa para morrer pobre e incompreendido. Como Camões. 

Sabe o que acho? Que Alagoa Nova nunca esteve morta nem esgotada; que o difícil para cada alagoanovense (ainda lembrando Miguel Torga) não é sê-lo; é compreender-se. Nunca soubemos, talvez, olhar friamente para nós no espelho da vida, porque a paixão nos tolda a vista. Daí a espécie de obscura inocência com que atuamos em sua História. A poder e a valer, nem sempre temos a consciência do que podemos e valemos. Hipertrofiamos provincianamente as capacidades alheias e minimizamos maceradamente as nossas, sem nos lembrarmos de que uma criatura só não presta quando deixa de ser inquieta. E nós somos a própria inquietação encarnada. (...)

Um encontro com Patativa do Assaré

Trecho de livros de memórias em preparo.

(...)
São Paulo me comove. Suas figuras, aqueles desprovidos de sentimento, crianças, adolescentes, adultos e, principalmente, velhos. A velhice me comove, sempre me comoveu.

Um dia, Patativa do Assaré chegou de mansinho. Foi-me apresentado por Expedito Filho, o conhecido radialista Mano Novo. Em pleno centro de São Paulo eu mirava aquela figura franzina que vinha do Ceará em busca de uma córnea que lhe permitisse voltar a enxergar. Mais que tudo, voltar a enxergar sua Belinha, mãe de seus sete filhos, sete gladiadores, iguais aos da história romana.

Embora sua vida estivesse escancarada, repetia o lugar de nascimento, que começou a versejar por volta dos onze ou doze anos, que a partir daí seguiu cantando as dores apaixonadas dos sertanejos, a invasão “atristurante” dos exércitos de fantasmas compostos de homens desfigurados, mulheres macilentas e crianças a sugar em seios maternos os últimos resíduos de uma seiva inexistente.

Impressionava-me sua vitalidade aos 79 anos. De estrutura mirrada, talvez não passasse de 1,50m, se agigantava quando cantava seu canto destemido. Mais declamava que conversava. Caminhava com dificuldade, pois tinha uma perna recheada de grampos. Ainda assim, andamos em círculo pela Praça da República, centro de São Paulo. Eu perguntando, ele reclamando da quase cegueira.

-- Eu com nada me aquebranto, viu? Tenho sofrido muito. Olhe essa perna, está toda grampeada. Um carro me colheu em Fortaleza, me obrigando a ficar um ano e meio no Rio de Janeiro para tratamento. De modo que a marcha da vida tem sido um pouco espinhosa para mim, mas nunca conseguiram me tirar a alegria, o prazer, e a primeira qualidade que é compor minha poesia.

O tempo ia mudando. Deolinda, uma loura cearense que o acompanhava por toda parte, me pedia para sentar. Patativa ria:

-- Esta é Diolinda, minha lilinda, meu anjo protetor. Para mim, que não tenho visão, ela tá sempre me avisano.       

O céu de São Paulo mostrava-se carrancudo. Patativa se despedia e me convidava para o lançamento de seu livro “Poesia e Fulô”.

 -- Tu vai?
-- Claro!
-- Ah, ah, tu num vai não. Eu te conheço de outros sertão!

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Sobre Wilson Simonal

Houve um tempo em que todo mundo virou as costas para Wilson Simonal. Não foram poucos os que o desclassificaram e buscaram apagar sua história, juntando num mesmo liquidificador inveja, racismo e sei lá mais o quê. Principalmente os que se diziam militantes culturais de esquerda ou, na falta do que fazer, viviam expelindo regras e se mostrando defensores de sua própria liberdade de expressão, porque os interesses eram sempre individuais, raramente coletivos. Eu mesmo cheguei a questionar a postura do artista incentivado por tudo aquilo que os jornais publicavam.

Depois de ler o Pasquim compreendi que Simonal já era como um leproso, ninguém queria chegar perto, o amigos dos tempos de noitadas fartas negavam a “amizade”. A crucificação pública seria demorada.

Conheci Simonal no meio desse embroglio todo, acompanhei de certa forma sua angustia e seu silencio imposto. Vi-o muitas vezes tentando uma justificativa pífia.

Anos depois, atuando como produtor cultural em São Paulo, constantemente recebia sua visita em meu escritório. Ele procurava o espaço que por direito também era seu: o palco. E, de fato, chegamos a realizar alguma coisa.. Já não tinha a mesma voz, aquela voz que dominava espaços, como é o caso do famoso show do Maracanãzinho. Passávamos horas conversando. O assunto do passado sempre tinha algum espaço nessas conversas. Mas a cada dia perdia a força de repetir que não era culpado, apesar dos documentos de Brasília que ele queria mostrar e ninguém queria ver.

Estivemos juntos em alguns espaços musicais. Noutros, era pego de surpresa com sua chegada, sempre discreta. Uma noite no Café Piu-Piu, minha amiga Alaíde Costa cantava. Era um show, como sempre, de grande beleza, intimista, sofrido. Num momento virei-me e dei de cara com  Simonal de pé, na penumbra. Fui até ele, nos abraçamos. Estava sóbrio. Pedi licença um instante, fui ao palco e coxixei no ouvido de Alaíde. Voltei ao seu lado sem nada lhe dizer. Terminada uma música Alaíde fez um rasgado elogio ao artista, agradeceu sua presença e chamou-o ao palco. Ele não esperava. Deu-me um beliscão, uma batida nas costas, virou-se pro balcão e pediu urgentemente uma dose. Virou o copo e foi ao palco. Uma noite memorável.
Mais alguns anos se passaram. Estávamos em seu velório eu, Jair Rodrigues, sua esposa Clodine, Kiko Egídio, Wanderléa, Simoninha, sua irmã, Sandra e Nicéia Pita (que chegou protegida por um colete a prova de balas). Depois, parece-me, chegou seu filho Max, quando o corpo estava prestes a sair para o cemitério

“Meu Deus, pensava eu, como uma coisa dessas pode acontecer? Por que esse vazio?" Ali estávamos apenas nós a velar-lhe. Imaginei esse vazio repetido no cemitério, mas o cantor Silvio Brito me diria mais tarde que chegaram várias pessoas para o adeus. Menos mal.

No velório de Simonal, meu pensamento vagava. Eu não estava ali, ele não estava ali, ninguém estava ali. O cenário era o Maracanãzinho de 1969, com suas dez, dez, dez mil pessoas de frente, do lado, de lado...  Mas que besteira: o ano era 2000, 25 de junho. No caixão, meu amigo Wilson Simonal.

O tempo passa. Seu nome continua em pauta, principalmente depois do filme em que demonstra o duro que deu na vida. E a pergunta ainda a vagar: dedurou?

E por que essa lembrança?  É que hoje, 13 de setembro, leio nos jornais que no Rio de Janeiro artistas o celebram, entre eles Caetano Veloso. O que acontece? Volta o velho ditado: para ser bom precisa morrer.


Eu amei Victoria Blue

Podemos ler o livro imaginando uma sequência cinematográfica: ruas de Nova York, Central Park, guetos, encontros furtivos, vida e morte sob as luzes imorredouras da cidade –mundo. Mas aí ficaria uma leitura comum, boba, beirando aquele estereótipo a que nos acostumamos na telinha. Podemos até encarar o livro como uma série de televisão, como lembra Caio Tulio Costa na orelha, mas temos mesmo que lê-lo como uma obra literária que nos toca, que nos ensina, que nos apresenta um autor de tão pouca idade mas tão adulto na escrita. Refiro-me a Eu amei Victoria Blues, de Estêvão Romane, recém lançado pela Geração Editorial.

Aparentemente uma história simples: um garoto brasileiro muda-se para Nova Iorque para estudar e, num de repente, torna-se presa de uma garota fenomenal, também brasileira, que vive naquela cidade, embora com outros objetivos: o de todo imigrante comum de uma milionésima leva: dinheiro ou fama – que não é o caso do referido garoto, diga-se de passagem.

Do primeiro encontro ao fim sofrido de um romance novelesco (no melhor sentido) nos pegamos enfrentando os deslizes da alma humana. Não é somente a história de um jovem de vinte e poucos anos, já um amante “inveterado” do sexo, que se apaixona perdidamente, mas um tratado psicológico(sem psicologismos), um escancaramento da possibilidade que tem o ser humano de transmudar-se, de afundar-se nas águas da mentira, que tanto pode ser sua ruína como também sua salvação. Ela se chama Fernanda, ele Davi. Mentir para Fernanda é a forma de sobreviver num mundo que teima em ameaçar-lhe com o passado difícil, nebuloso. Quer amar de verdade, precisa amar de verdade, mas a mentira está ali para impedir, para mascarar tudo. Ela é uma máscara. Pensando assim, quem sabe a máscara veneziana que o amante encontra em suas coisas (uma citação casual apenas) não seja algo simbólico na vida confusa que ele vai descobrir em Fernanda?

Davi mostra-se mais adulto do que é em verdade. É capcioso, as coisas lhe aparecem embaralhadas, como quebra-cabeças, mas ele demonstra capacidade de ordená-las. E vai desenrolando um carretel de surpresas. Quem é ela ? O que faço? Onde me enredo? Ele sabe que está entrando nas mesmas águas, que também está se afogando, mas tem a sapiência de procurar a melhor forma de nadar e sair em braçadas rápidas para reparar sua própria vida. E sanidade.

Eu amei Victoria Blue deve ser um acontecimento literário. Deverá atingir qualquer tipo de publico por seus ingredientes: sexo, poesia, refinamento no comer, no beber e no ouvir, por exemplo, e uma pincelada na vida diuturna de uma das mais interessantes e curiosas cidades do mundo. Mas acima de tudo atingirá pela escrita.

Conheci seu autor no dia em que nasceu, de certa forma acompanhei sua trajetória. Nenhuma surpresa ao ler o livro, principalmente ao saber que vem de boa cepa (os pais sabem escrever) e que sempre conviveu com o melhor em termos de literatura, música e boa mesa.