segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Carta a São Paulo

Outro dia o meu amigo cantor Zé Luiz Mazziotti falava da saudade de uma São Paulo que não mais existe. E puxou um coro de gente interessante, entre as quais Marilia Barbosa, a grande cantora e atriz. Pois bem, encontrei em meus guardados um artigo escrito por mim no já extinto jornal Folha da Tarde,  em 8/05/1992, a pedido do amigo Wladyr Nader, que organizava a coluna, que contou com personalidades importantes escrevendo um texto para a cidade. Está aí o meu:



A madrugada era fria e frios os olhares de teus edifícios envoltos pela garoa -- a garoa ainda fazia parte de tua poesia e nela os poetas arquejavam e tramavam seu canto de paixão e argamassa. E meu coraçãom paraibano mergulhava da poltrona quebrada do modernoso pau-de-arara para tua grandeza e indiferença.

A mala já pesava de saudade e angústia quando a mão amiga de Sadi Cabral -- o velho e querido Sadi -- veio em meu auxílio. Era Sadi quem me dava ciência dos olhares das fechaduras que rabiscavam a vida dos que passavam e pisavam duro em teu chão; com ele vaguei surpreso pelas surpresas de tuas esquinas, neguei às prostituas o amor pretendido e carregado de culpas, observei teus sobradões já carcomidos e ictéricos, transpirando bactérias doentias que o sereno dá e a fome cultiva. Ah, meus 17 anos...

Os primeiros anos foram duros, mas os sonhos nos ajudavam a seguir. O medo da grande cidade, Grande Cidade, se transformava numa alavanca que me levaria à militância comunista. Em teus porões conspiramos por uma vida melhor; penetramos teus labirintos em busca de homens para a nossa causa; cantamos teu dia-a-dia reascunhado em papéis amassados. E tu, São Paulo, te convertias num misto de amor e ódio. Foi então que, intrigados, acovardados, arrogantes, pobres coitados, outros homens chegaram desafivelando os cintos, apontando a metranca, engendrando novos mártires, afundando-te num beabá mal soletrado. Tutóia, tipóia do tumor, patamares da sanguinolência. Aqueles homens matando Vlado, amordaçando nossas palavras, campeando fantasmas em folhas brancas, torturando, impondo-nos a eterna paranóia. Palavras de manteiga passaram a cinzelar os versos que para ti, São Paulo, compúnhamos. Eram estranhas tuas tardes de mofo, quando os homens celebravam mortes em incenso e castiçal.

Os dias passaram, passamos nós pelos dias, tantos. Já a nuvem cinzenta era outra, ou meus olhos eram outros, sendo os mesmos. Tua paisagem cada vez mais desfigurada -- e meus olhos eram os mesmos, neon, bronze e cristais. O Tietê sucumbindo com nossos industriais dejetos, o Jaraguá desnudo já não sugerindo mistérios e a nuvem de fumaça escondendo os vagalumes que bem poderiam iluminar vidas. Houve vagalumes em São Paulo, não houve? Os homens, estes, aqueles, aqueloutros, brincando de suicídio com o revólver da sem-razão; a emoção ditando nossos passos e a noite, um imenso cuspidor de fantasias. E a chuva.

Hoje és torre de Babel, bordel, as retinas cansadas e os mesmos olhos. Nordestinamente doentias, as favelas são nódoas na colcha de retalhos da tua magnitude e parca magnanimidade; o humor dos cortiços canta a miséria indefinida -- os homens-gabirus jamais deixaram teu lixo.

Ah, São Paulo, qual a forma definida para se cantar a alma de uma cidade tuberculosa, teu rumor, os homens jamais te deixarão? Cantar os mendigos que tomam conta de tuas calçadas e fazem das marquises lares de poucas horas? Cantar esse amor-ódio-amor numa simples carta? Recurso falido, embora o uso do aplauso anônimo àqueles jeremias sem choro nem vela.

Ah, São Pálida desperdício de ilusões e quimeras, de amores incompreendidos, de novos profetas de viaduto que rezam para descer o jesuscristinho numa romaria de róseos querubins, graça e  perdão,  desvario de camelôs em suas bugigangas de tantas terras para lá da paraíba, china, oropas, frança, bahias, vasto céu de organdi.

No telão está o aviso: ó poeta, canta outras maravilhas!